terça-feira, 29 de novembro de 2011

O que é Ciência?

Um capitulo do livro "O Mundo Assombrado pelos demônios" de Carl Sagan, onde ele explica muito bem e de forma muito simples o que é a ciência. Sabemos que para um post é grande a quantidade de informação, mas garanto para você que com esse único capitulo vocês irão saber o que é a verdadeira Ciência e o que é a Pseudociência. Garanto vale a pena ler esse capitulo e com certeza o livro inteiro, se você puder ler o livro inteiro terá um conhecimento inimaginável, repassado por o incrível CARL SAGAN.


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A COISA MAIS PRECIOSA




"Toda a nossa ciência, comparada com a realidade, é primitiva e
infantil – e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos". Albert Einstein (1879-1955)


Quando desembarquei do avião, ele esperava por mim, erguendo um pedaço de papelão em que se achava rabiscado o meu nome. Eu estava a caminho de uma conferência de cientistas e profissionais de televisão cujo objetivo, aparentemente inútil, era melhorar a apresentação da ciência na televisão. Os organizadores tinham gentilmente enviado um motorista.
– --Você se importa se eu lhe perguntar uma coisa? – disse ele enquanto esperávamos pela minha mala.
Não, eu não me importava.
– --Não é confuso ter o mesmo nome daquele cientista?
Levei um momento para compreender. Ele estava caçoando de min?
Finalmente, comecei a entender.
--– Eu sou aquele cientista – respondi.
Ele fez uma pausa e depois sorriu.
– 
Desculpe. Eu tenho esse tipo de problema. Pensei que também fosse o seu. – Estendeu a mão. – Meu nome é William F. Buckley. (Bem, ele não era exatamente William F. Buckley, mas tinha o mesmo nome do famoso e polêmico entrevistador de TV, o que devia lhe render uma boa dose de zombarias bem-humoradas.)
Quando nos acomodamos no carro para a longa viagem, os limpadores de pára-brisa batendo ritmicamente, ele me disse que estava contente por eu ser “aquele cientista” – tinha perguntas a fazer sobre ciência. Eu me importaria?
Não, eu não me importaria.
E assim começamos a falar. Mas, como logo ficou claro, não foi sobre ciência que conversamos. Ele queria falar sobre extraterrestres congelados que definhavam na base da Força Aérea perto de San Antonio, sobre
“canalização” (um modo de escutar o que se passa nas mentes dos mortos –pouca coisa, pelo visto), sobre cristais, as profecias de Nostradamus, astrologia, o sudário de Turim... Ele introduzia cada um desses assuntos portentosos com um entusiasmo eufórico. E tive de desapontá-lo todas as
vezes.
– --As evidências são precárias – eu repetia. – Existe uma explicação
muito mais simples.
De certa maneira, ele era bem informado. Conhecia as várias nuanças especulativas sobre, digamos, os “continentes afundados” de Atlântida e Lemuria. Sabia na ponta da língua as expedições submarinas que deviam estar partindo para descobrir as colunas derrubadas e os minaretes quebrados de uma outrora grande civilização, cujas ruínas só eram visitadas atualmente por peixes luminescentes do fundo do mar e por gigantescos monstros marinhos. Só que... embora o oceano contenha muitos segredos, eu sabia que não existe nenhum sinal de confirmação oceanográfica ou geofísica para Atlântida e Lemuria. Pelo que a ciência pode afirmar, esses continentes jamais existiram. Já um pouco relutante a essa altura, eu lhe passei a
informação.
  Enquanto rodávamos pela chuva, podia vê-lo se tornar cada vez mais soturno. Eu não estava apenas negando alguma doutrina falsa, mas uma faceta preciosa de sua vida interior. Porém, tanta coisa na ciência verdadeira é igualmente emocionante, mais misteriosa, um estímulo intelectual muito maior – além de estar bem
mais perto da verdade. Ele sabia dos tijolos moleculares da vida que existem lá fora, no gás frio e rarefeito entre as estrelas? Tinha ouvido falar sobre as pegadas de nossos antepassados que foram encontradas em cinza vulcânica de 4 milhões de anos? E que dizer do Himalaia se erguendo quando a Índia se espatifou contra a Ásia? Ou da maneira pela qual os vírus, construídos como seringas hipodérmicas, introduzem furtivamente o seu DNA pelas defesas do organismo hospedeiro e subvertem o mecanismo reprodutivo das células?; ou da procura de inteligência extraterrestre pelo rádio?; ou da recém-descoberta antiga civilização de Ebla que alardeava as virtudes da cerveja Ebla? Não, ele não tinha ouvido falar. Como também não conhecia, nem mesmo vagamente, a indeterminação quântica, e reconhecia DNA apenas como três letras maiúsculas que freqüentemente aparecem juntas. O sr. “Buckley” – bom papo, inteligente, curioso – não tinha ouvido virtualmente nada sobre a ciência moderna. Ele tinha um apetite natural pelas maravilhas do Universo. Queria conhecer a ciência. O problema é que toda a ciência se perdera pelos filtros antes de chegar até ele. Os nossos temas culturais, o nosso sistema educacional, os nossos meios de comunicação haviam traído esse homem. O que a sociedade permitia que se escoasse pelos seus canais era principalmente simulacro e confusão. Nunca lhe ensinara como distinguir a ciência verdadeira da imitação barata. Ele não tinha idéiade como a ciência funciona.
  Há centenas de livros sobre Atlântida – o continente mítico que dizem ter existido há uns 10 mil anos no oceano Atlântico. (Ou em algum outro lugar. Um livro recente o localiza na Antártida.) A lenda remonta a
Platão, que a relatou como uma história de eras remotas que lhe chegou aos ouvidos. Livros recentes descrevem com segurança o alto nível da tecnologia, dos costumes e da espiritualidade em Atlântida, bem como a grande tragédia que significa um continente povoado afundar nas ondas. Há uma Atlântida da “Nova Era”, “a lendária civilização de ciências avançadas”, voltada principalmente para a “ciência” dos cristais. Numa trilogia chamada Crystal Enlightenment, escrita por Katrina Raphaell – os livros que são os principais responsáveis pela mania de cristais nos Estados Unidos –, os cristais de Atlântida lêem a mente, transmitem pensamentos, são repositórios de história antiga, bem como o modelo e a fonte das pirâmides do Egito. Nada que chegue perto de alguma evidência é oferecido para confirmar essas afirmativas. (Talvez haja um ressurgimento da mania de cristais depois da recente descoberta, feita pela ciência verdadeira da sismologia, de que o núcleo interior da Terra pode ser composto de um único cristal imenso e quase perfeito – de ferro.)

   Alguns livros – Legends of the Earth, de Dorothy Vitaliano, por exemplo – interpretam com simpatia as lendas originais de Atlântida como uma pequena ilha no Mediterrâneo que foi destruída por uma erupção vulcânica, ou como uma antiga cidade que deslizou para dentro do golfo de Corinto depois de um terremoto. Pelo que sabemos, essa pode ser a origem da lenda, mas está muito longe da destruição de um continente onde surgira
uma civilização mística e técnica sobrenaturalmente avançada. O que quase nunca encontramos – nas bibliotecas públicas, nas revistas das bancas de jornais e nos programas de horário nobre na televisão é a evidência, fornecida pelo deslocamento do fundo do mar e pelo movimento das placas tectônicas, e também pelo mapeamento do fundo do oceano, mostrando de forma inequívoca a impossibilidade de ter existido um
continente entre a Europa e as Américas num período que se aproxime da escala de tempo proposta.

 Os relatos espúrios que enganam os ingênuos são acessíveis. As abordagens céticas são muito mais difíceis de encontrar. O ceticismo não vende bem. Uma pessoa inteligente e curiosa, que se baseie inteiramente na cultura popular para se informar sobre uma questão como Atlântida, tem uma probabilidade centenas ou milhares de vezes maior de encontrar uma fábula tratada de maneira acrítica em lugar de uma avaliação sóbria e equilibrada.
Talvez o sr. Buckley tivesse que saber ser mais cético a respeito das informações que lhe são fornecidas pela cultura popular. Mas, fora isso, é difícil achar que a falha é sua. Ele simplesmente aceitou o que as fontes de informação mais difundidas e acessíveis diziam ser verdade. Por ingenuidade, foi sistematicamente enganado e ludibriado. A ciência desperta um sentimento sublime de admiração. Mas a pseudociência também produz esse efeito. As divulgações escassas e malfeitas da ciência abandonam nichos ecológicos que a pseudociência
preenche com rapidez. Se houvesse ampla compreensão de que os dados do conhecimento requerem evidência adequada antes de poder ser aceitos, não haveria espaço para a pseudociência. Mas na cultura popular prevalece uma espécie de Lei de Gresham, segundo a qual a ciência ruim expulsa a boa.
   Em todo o mundo, existe um enorme número de pessoas inteligentes e até talentosas que nutrem uma paixão pela ciência. Mas essa paixão não é correspondida. Os levantamentos sugerem que 95% dos norteamericanos são “cientificamente analfabetos”. A porcentagem é exatamente igual à de afro-americanos, quase todos escravos, que eram analfabetos pouco antes da Guerra Civil – quando havia penalidades severas para quem ensinasse um escravo a ler. É claro que existe um grau de arbitrariedade em qualquer determinação de analfabetismo, quer ele se aplique à língua, quer à ciência. Mas qualquer índice de analfabetismo próximo de 95% é grave.

  Toda geração se preocupa com o declínio dos padrões educacionais. Um dos ensaios curtos mais antigos, escrito na Suméria há 4 mil anos, lamenta que os jovens sejam desastrosamente mais ignorantes do que a geração imeditatamente anterior. Há 2400 anos, o idoso e rabugento Platão, no livro VII das Leis, deu a sua definição de analfabetismo científico: 

Aquele que não sabe contar um, dois, três, nem distinguir os números
ímpares dos pares, ou que não sabe contar coisa alguma, nem a noite nem
o dia, e que não tem noção da revolução do Sol e da Lua, nem das outras
estrelas [...]. Acho que todos os homens livres devem estudar esses ramos
do conhecimento tanto quanto ensinam a uma criança no Egito, quando
ela aprende o alfabeto. Naquele país, os jogos aritméticos foram
inventados para ser empregados por simples crianças, e elas os aprendem
como se fosse prazer e diversão [...]. Com espanto, eu [...] no final da vida,
tenho tomado conhecimento de nossa ignorância sobre essas questões;
acho que parecemos mais porcos do que homens, e tenho muita vergonha,
não só de mim mesmo, mas de todos os gregos.


Não sei até que ponto a ignorância em ciência e matemática contribuiu para o declínio da Atenas antiga, mas sei que as conseqüências do analfabetismo científico são muito mais perigosas em nossa época do que em
qualquer outro período anterior. É perigoso e temerário que o cidadão médio continue a ignorar o aquecimento global, por exemplo, ou a diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo, o desflorestamento tropical, o crescimento exponencial da população. Os empregos e os salários dependem da ciência e da tecnologia. Se a nossa nação não puder fabricar, com alta qualidade e a preços baixos, os produtos que as pessoas querem comprar, as indústrias continuarão a se deslocar e a transferir um pouco mais de prosperidade para as outras partes do mundo. Considerem-se as ramificações sociais da energia de fissão e fusão, dos supercomputadores, das “superrodovias de informações, do aborto, do radônio, das reduções maciças de
armas estratégicas, do vício das drogas, da intromissão do governo nas vidas de seus cidadãos, da TV de alta resolução, da segurança das linhas aéreas e dos aeroportos, dos transplantes de tecidos fetais, dos custos da saúde, dos aditivos alimentares, dos remédios para melhorar a mania, a depressão ou a esquizofrenia, dos direitos dos animais, da supercondutividade, das pílulas anticoncepcionais tomadas após a relação sexual, das alegadas predisposições anti-sociais hereditárias, das estações espaciais, da ida a Marte, da procura de curas para a AIDS e o câncer.

Como podemos executar a política nacional – ou até mesmo tomar decisões inteligentes sobre nossas próprias vidas – se não compreendermos as questões subjacentes? Enquanto escrevo, o Congresso está dissolvendo seu próprio Departamento de Avaliação de Tecnologia – a única organização que tem a tarefa específica de orientar a Câmara e o Senado sobre ciência e tecnologia. Sua competência e integridade têm sido exemplares durante todos esses anos. Dos 535 membros do Congresso dos Estados Unidos, raramente
1% chegou a ter alguma formação científica significativa no século XX. O último presidente cientificamente alfabetizado foi talvez Thomas Jefferson.*
Assim, como é que os norte-americanos decidem essas questões? Como é que instruem os seus representantes? Quem de fato toma essas decisões, e baseando-se em que fundamentos?
Hipócrates de Cós é o pai da medicina. Ele é ainda lembrado, 2500 anos depois, por causa do juramento hipocrático (uma forma alterada desse juramento ainda é repetida, em alguns lugares, pelos estudantes de medicinano momento de sua formatura). Mas ele é celebrado sobretudo por seus
                                                          
(*) Embora se possam fazer afirmações nesse sentido sobre Theodore Roosevelt,Herbert Hoover e Jimmy Carter. A Grã-Bretanha teve recentemente um primeiro-ministro desse tipo em Margaret Thatcher. Seus estudos anteriores de química, em parte sob a orientação de Dorothy Hodgkins, laureada com o Nobel, foram essenciais para a defesa vigorosa e bem-sucedida do Reino Unido no sentido de que fossem banidos em todo o mundo os CFCs que estão diminuindo a camada de ozônio.

Esforços para arrancar a medicina do terreno da superstição e trazê-la à luz da ciência. Numa passagem típica, Hipócrates escreveu: “Os homens acham a epilepsia divina, simplesmente porque não a compreendem. Mas se chamassem de divino tudo o que não compreendem, ora, as coisas divinas não teriam fim”. Em vez de reconhecer que em muitas áreas somos ignorantes, temos nos inclinado a dizer, por exemplo, que o Universo está impregnado com o inefável. A um Deus das Lacunas é atribuída a responsabilidade pelo que ainda não compreendemos. Como o conhecimento da medicina tem se desenvolvido desde o século IV a.C., cada vez mais aumenta o que compreendemos e diminui o que tinha de ser atribuído à intervenção divina – a respeito das causas ou do tratamento da doença. As mortes na hora do parto e a mortalidade infantil decresceram, o tempo de vida foi prolongado, e a medicina melhorou a qualidade de vida para bilhões de seres humanos em todo o planeta. Hipócrates introduziu elementos do método científico no diagnóstico da doença. Ele recomendava com insistência a observação cuidadosa e meticulosa: “Não deixem nada ao acaso. Não percam nenhum detalhe. Combinem as observações contraditórias. Não tenham pressa”. 

Antes da invenção do termômetro, ele fez o gráfico das curvas de temperatura de muitas doenças. Recomendava que os médicos fossem capazes de explicar, somente a partir dos sintomas presentes, o provável desenvolvimento passado e futuro de cada doença. Enfatizava a honestidade. Estava disposto a admitir as limitações do conhecimento médico. Não se envergonhava de contar para a posteridade que mais da metade de seus pacientes morrera das doenças que ele estava tratando. Suas opções de ação eram limitadas; os remédios de que dispunha eram principalmente laxantes, eméticos e narcóticos. Realizavam-se cirurgias e cauterização. Outros progressos consideráveis ainda foram feitos em toda a época clássica, até a
queda de Roma. Enquanto a medicina floresceu no mundo islâmico, o que seguiu na Europa foi na realidade uma era negra. Grande parte do conhecimento de anatomia e cirurgia se perdeu. Era muito difundido o recurso às orações e às curas milagrosas. Os médicos seculares foram extintos. Empregavam-se por
toda parte cantilenas, poções, horóscopos e amuletos. As dissecações de cadáveres foram restringidas ou proscritas, por isso aqueles que praticavam a medicina não podiam adquirir em primeira mão o conhecimento do corpo humano. A pesquisa médica ficou estagnada. Uma situação muito parecida com a que o historiador Edward Gibbon descreveu para todo o Império do Oriente, cuja capital era Constantinopla:

Num período de dez séculos, nem uma única descoberta foi feita para exaltar a dignidade ou promover a felicidade da humanidade. Nem uma única idéia foi acrescentada aos sistemas especulativos da Antigüidade, e uma série de discípulos pacientes se transformava, por sua vez, nos professores dogmáticos da geração servil seguinte.
Mesmo em seus melhores momentos, a prática médica pré-moderna não salvou muita gente. A rainha Anne foi a última monarca Stuart da Grã- Bretanha. Nos últimos dezessete anos do século XVII, ela ficou grávida
dezoito vezes. Apenas cinco filhos nasceram com vida. Somente um deles sobreviveu aos primeiros anos da infância. Morreu antes de atingir a idade adulta e da coroação da mãe em 1702. Não parece haver evidência de distúrbio genético. Ela tinha os melhores cuidados médicos que o dinheiro podia comprar.
As doenças que outrora vitimavam bebês e crianças têm sido progressivamente mitigadas e curadas pela ciência – por meio da descoberta do mundo microbiano, pela compreensão de que os médicos e as parteiras
devem lavar as mãos e esterilizar os seus instrumentos, pela nutrição, por medidas sanitárias e de saúde pública, pelos antibióticos, remédios, vacinas, pela descoberta da estrutura molecular do DNA, pela biologia molecular, e agora pela terapia genética. Pelo menos no mundo desenvolvido, os pais têm hoje em dia muito mais chance de ver os filhos atingirem a idade adulta do que tinha a herdeira do trono de uma das nações mais poderosas da Terra no final do século XVII. A varíola foi eliminada em todo o mundo. A área de
nosso planeta infestada com os mosquitos transmissores da malária encolheu drasticamente. O número de anos de expectativa de vida de uma criança com diagnóstico de leucemia tem aumentado progressivamente. A ciência permite que a Terra alimente um número de seres humanos cem vezes maior, e sob condições muito menos penosas, do que era possível há alguns milhares de anos.

Podemos rezar pela vítima do cólera, ou podemos lhe dar quinhentos miligramas de tetraciclina a cada doze horas. (Ainda existe uma religião, a ciência cristã, que nega a teoria que atribui as doenças a micróbios;
se a oração não produz efeito, o fiel prefere que os filhos morram a lhes dar antibióticos.) Podemos tentar a quase inútil terapia psicanalítica pela fala com o paciente esquizofrênico, ou podemos lhe dar trezentos a quinhentos miligramas de clazepina. Os tratamentos científicos são centenas ou milhares de vezes mais eficazes do que os alternativos. (E, mesmo quando os alternativos parecem funcionar, não sabemos realmente se desempenharam algum papel: melhoras espontâneas, até de cólera e esquizofrenia, podem ocorrer sem rezas e sem psicanálise.) Renunciar à ciência significa abandonar muito mais do que o ar-condicionado, o toca-disco CD, os secadores de cabelo e os carros velozes.

Nos tempos pré-agrícolas dos caçadores-coletores, a expectativa de vida humana era cerca de 20...30 anos. Essa era também a expectativa de vida na Europa ocidental no final do Império Romano e na Idade Média. Ela só aumentou para quarenta por volta de 1870. Chegou a cinqüenta em 1915, a sessenta em 1930, a setenta em 1955, e está se aproximando de oitenta hoje em dia (um pouco mais para as mulheres, um pouco menos para os homens). O resto do mundo está repetindo o incremento europeu da longevidade. Qual é
a causa dessa transição humanitária espantosa e sem precedentes? A teoria microbiana das doenças, as medidas de saúde pública, os remédios e a tecnologia médica. A longevidade talvez seja a melhor medida da qualidade física da vida. (Se você está morto, pouco pode fazer para ser feliz.) Essa é
uma dádiva preciosa da ciência à humanidade – nada menos do que o dom da vida. Mas os microorganismos sofrem mutações. Novas doenças se disseminam rapidamente. Há uma batalha constante entre as medidas
microbianas e as contramedidas humanas. Acompanhamos o ritmo dessa competição, não apenas inventando novos remédios e tratamentos, mas indo cada vez mais fundo na procura de uma compreensão da natureza da vida – a pesquisa básica.

Se o mundo quiser evitar as conseqüências terríveis do crescimento da população global, com 10 ou 12 bilhões de pessoas no planeta no final do século XXI, temos de inventar meios seguros, porém mais eficientes, de cultivar alimentos – com o auxílio de estoques de sementes, irrigação, fertilizadores, pesticidas, sistemas de transporte e refrigeração. Serão também necessários métodos amplamente acessíveis e aceitáveis de contracepção, passos significativos para a igualdade política das mulheres e melhoramentos nos padrões de vida das pessoas mais pobres. Como será possível fazer tudo isso sem a ciência e a tecnologia?
Sei que a ciência e a tecnologia não são apenas cornucópias despejando dádivas sobre o mundo. Os cientistas não só conceberam as armas nucleares; eles também pegaram os líderes políticos pela lapela, argumentando que a sua nação – qualquer que ela fosse – tinha que ser a primeira a fabricar uma dessas armas. E assim eles produziram mais de 60 mil armas nucleares. Durante a Guerra Fria, os cientistas nos Estados Unidos, na União Soviética, na China e em outras nações estavam dispostos a expor os seus conterrâneos à radiação – na maioria dos casos, sem o conhecimento deles – a fim de se preparar para a guerra nuclear. Médicos em Tuskegee, Alabama, enganaram um grupo de veteranos fazendo-os crer que estavam recebendo tratamento médico para a sífilis, quando na verdade eram elementos de controle que não recebiam medicação. As crueldades atrozes dos médicos nazistas são bem conhecidas. A nossa tecnologia produziu a
talidomida, os CFCs, o agente laranja, os gases que atacam o sistema nervoso, a poluição do ar e da água, as extinções das espécies, e indústrias tão poderosas que podem arruinar o clima do planeta. Aproximadamente metade dos cientistas na Terra dedica parte de seu tempo de trabalho para fins militares. Embora alguns cientistas ainda sejam vistos como estranhos ao sistema, criticando corajosamente os males da sociedade e dando os primeiros avisos sobre catástrofes tecnológicas potenciais, muitos são
considerados oportunistas submissos ou uma fonte complacente de lucros empresariais e de armas de destruição em massa – não importa quais sejam as conseqüências a longo prazo. Os perigos tecnológicos que a ciência apresenta, seu desafio implícito ao conhecimento recebido e sua visível dificuldade são razões para que as pessoas, desconfiadas, a evitem. Existe umarazão para as pessoas ficarem nervosas a respeito da ciência e da tecnologia. E assim a imagem do cientista maluco assombra o nosso mundo – até nos médicos loucos dos programas infantis de TV nas manhãs de sábado e na pletora de barganhas faustianas na cultura popular, do próprio epônimo dr. Faustus ao Dr. Frankenstein, Doutor Fantástico e Parque dos Dinossauros.
Mas não podemos simplesmente concluir que a ciência coloca poder demais nas mãos de tecnólogos moralmente fracos ou de políticos corruptos e ávidos de poder, e tomar a decisão de que precisamos livrar-nos dela. As vidas salvas pelos progressos na medicina e na agricultura são muito mais numerosas do que as perdidas em todas as guerras da história.** Os progressos nos transportes, nas comunicações e na indústria do entretenimento transformaram e unificaram o mundo. Em todas as pesquisas de opinião, a ciência é classificada entre as ocupações mais admiradas e dignas de crédito, apesar dos receios. A espada da ciência tem dois gumes.

Sua força terrível impõe a todos nós, inclusive aos políticos, mas especialmente aos cientistas, uma nova responsabilidade – mais atenção às conseqüências de longo prazo da tecnologia, uma perspectiva que ultrapasse as fronteiras dos países e das gerações, um incentivo para evitar os apelos fáceis do nacionalismo e do chauvinismo. Os erros estão se tornando caros demais. Nós nos importamos com o que é verdade? Isso faz alguma diferença?
                                                          
(*) Recentemente, por ocasião de um grande jantar, perguntei aos convidados reunidos – cujas idades acho que variavam dos trinta aos sessenta – quantos deles estariam vivos hoje em dia, se não fossem os antibióticos, os marcapassos cardíacos e todo o resto da panóplia da medicina moderna. Apenas uma das mãos se ergueu. E não foi a minha.

...where ignorance is bliss,
’tis folly to be wise
[...quando a ignorância é felicidade,
É loucura ser sábio]

escreveu o poeta Thomas Gray. Mas será mesmo? Edmund Way Teale, em seu livro Circle of the Seasons de 1950, compreendeu melhor o dilema:

 Moralmente, é tão condenável não querer saber se uma coisa é verdade ou não, desde que ela nos dê prazer, quanto não querer saber como conseguimos o dinheiro, desde que ele esteja na nossa mão.

 É desanimador descobrir a corrupção e a incompetência governamentais, por exemplo, mas será melhor não saber a respeito? A que interesses a ignorância serve? Se nós, humanos, temos uma propensão hereditária a odiar os estranhos, o único antídoto não é o autoconhecimento? Se ansiamos por acreditar que as estrelas se levantam e se põem para nós, que somos a razão da existência do Universo, a ciência nos presta um desserviço esvaziando nossa presunção? Em Para a genealogia da moral, Friedrich Nietzsche, como tantos outros antes e depois dele, denigre o “progresso ininterrupto da autodepreciação humana” provocado pela revolução científica. Nietzsche lamenta o homem ter perdido a confiança “em sua dignidade, em seu caráter único e no fato de ser insubstituível no projeto da existência”. Para mim, é muito melhor compreender o Universo como ele realmente é do que persistir no engano, por mais satisfatório e tranqüilizador que possa ser. Qual dessas atitudes se presta melhor à nossa sobrevivência a longo prazo? Qual nos dá maior poder de influenciar o futuro? E se nossa autoconfiança ingênua é um pouco minada no processo, isso é uma perda assim tão grande? Não há razões para acolhê-la como uma experiência de amadurecimento e formação de caráter?

É desanimador descobrir a corrupção e a incompetência governamentais, por exemplo, mas será melhor não saber a respeito? A que interesses a ignorância serve? Se nós, humanos, temos uma propensão hereditária a odiar os estranhos, o único antídoto não é o autoconhecimento? Se ansiamos por acreditar que as estrelas se levantam e se põem para nós, que somos a razão da existência do Universo, a ciência nos presta um desserviço esvaziando nossa presunção?


Em Para a genealogia da moral, Friedrich Nietzsche, como tantos outros antes e depois dele, denigre o “progresso ininterrupto da autodepreciação humana” provocado pela revolução científica. Nietzsche lamenta
o homem ter perdido a confiança “em sua dignidade, em seu caráter único e no fato de ser insubstituível no projeto da existência”. Para mim, é muito melhor compreender o Universo como ele realmente é do que persistir no engano, por mais satisfatório e tranqüilizador que possa ser. Qual dessas atitudes se presta melhor à nossa sobrevivência a longo prazo? Qual nos dá maior poder de influenciar o futuro? E se nossa autoconfiança ingênua é um pouco minada no processo, isso é uma perda assim tão grande? Não há razões para acolhê-la como uma experiência de amadurecimento e formação de caráter?

.... Há muito mais nesse livro que explica de forma excelente o que á a ciência... (capítulo incompleto, caso queria ter todo o conhecimento deste paragrafo e/ou Caso queira lê-lo, disponibilizo o link dele
O MUNDO ASSOMBRADO PELOS DEMONIOS
**Este livro como retratado é de total autoria de CARL SAGAN, e não postamos na internet para download, este link já existente na internet foi somente indicado.**








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